No mês do gaúcho
16/09/2024 10:01:45
A professora Erminda era criativa. Queria mostrar aos seus alunos do quarto ano, as façanhas dos gaúchos durante a Guerra dos Farrapos. E o fez de forma lúdica, através de uma longa poesia. 
- Cada um de vocês vai decorar apenas uma estrofe da poesia e declamar. Não é exigir muito, tá bem?
Ninguém respondeu que concordava, mas assim ficou decidido. A Semana Farroupilha estaria sendo reverenciada. 
- É fácil! São apenas quatro versos em cada estrofe. 
Aos sábados, pela manhã, antes de iniciar as aulas, cantávamos um hino: Hino Nacional, da Independência, da Bandeira, e o Rio Grandense. Como era para comemorarmos a Revolução Farroupilha, repetimos à exaustão o “Como aurora precursora...” 
- Pronto. Agora, todos já sabem cantar de cor e salteado.  
A professora Erminda levou a criançada para o pátio e detalhou como deveria ser. Até declamou uma parte, explicando a importância da expressão corporal. Erguia os braços, fechava os olhos, juntava as mãos ao peito, apertando o coração. Alertou sobre a entonação da voz. Levantava e baixava o tom nas palavras. Às vezes parecia cantar uma suave melodia. Meus pensamentos voavam e procurei aterrissar. Fiquei imaginando como me livrar daquela situação em que me incluíam como um declamador. Eu nunca seria capaz daquilo.  
Recebi um pequeno papel com a estrofe. A sentença de morte estava em minhas mãos. Tive vontade de rasgá-lo ou comê-lo. Seria um pecado à caligrafia bonita da professora. Eu declamar? Me senti condenado ao fuzilamento num paredão. Em milésimos de segundos, minha imaginação ficou à deriva. Eu estava no palco para declamar. Meus vinte e cinco colegas se multiplicaram. Agora eram milhões. Todos com a cabeça inclinada sobre um fuzil, um olho fechado e o outro entreaberto, tentando encontrar a mira para puxar o gatilho acertando meu peito. E a professora Erminda, como um maestro de orquestra, baixaria o braço e gritaria FOGO. Após aquele jogral de estrondos, o pátio da escola esconderia os alunos sob uma nuvem de fumaça cheirando a pólvora. Os ouvidos zumbiriam até o eco dos estampidos sumirem pelos ares. Os alunos chorariam minha morte e a Professora aplaudiria minha declamação.
 O palco era o topo da escada com oito degraus que levava à entrada da Escola. Quem ia declamar recebia cuidados. A professora aprumava o aluno, dava um último retoque na gola do uniforme, puxava a manga da camisa, alisava o cabelo.  
Minha insegurança insistia para eu sumir. E eu sumia. Mas a professora, sempre atenta, falou que o próximo sábado me aguardava. Suei frio a semana inteira. Pedir aos céus pra me livrar daquele momento seria terceirizar um problema meu. Tentei alguns sintomas de febre alta, torcicolo, unha encravada, comichão pelo corpo inteiro. Nada. 
No sábado, me sentindo réu do pior crime do mundo, estava lá para ser guilhotinado na lâmina da timidez. E declamei: 
“Salve Vinte de Setembro / AÉREO dia soberano / Salve página fulgente / Do Brasil Republicano”.
Terminei de declamar e esqueci os oito degraus. Saltei lá de cima como se houvesse criado asas. Fui aplaudido. Ufa! Experimentei a sensação de vitória por não ter morrido.  
Com pesar, quarenta anos depois, estive no velório da professora Erminda. Seus olhos cerrados abriam os meus para reconhecer o valor de seu trabalho. E minha oração silenciosa foi declamar a mesma estrofe. Porém, aproveitei para corrigir o erro que cometi quando declamei na escola. Sob o leve bailado das chamas nas velas acesas resmunguei a estrofe aos seus ouvidos pela última vez: “Salve Vinte de Setembro / ÁUREO dia soberano / Salve página fulgente / Do Brasil Republicano.”
 
 
 
 
Por Luiz Hugo Burin
 

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